domingo, 2 de dezembro de 2012

ARQUIVO 1 - AMOR NO PONTO EXATO (Crônicas sobre amores possíveis)




IDI AMIN
“Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste! 
Passei a vida à toa, à toa...”

(Manuel Bandeira)

Imagine alguém ficar 27 anos sem ter contato com outro ser da mesma espécie e não poder se comunicar. Imagine alguém existir 27 anos assim: um nada, um ninguém, um solitário, uma sombra no caminho de si mesmo. Imagine se alguém pode ser feliz em um estado de solidão extrema, sem outra voz, sem outro som, sem o cheiro de outro, sem o gesto, sem o toque do carinho em qualquer nível que seja. E, sem ter o que expressar, no vazio de uma mudez forçada, ser incapaz de descobrir as relações das ações coletivas. 

Pois essa criatura existe: condenado ao exílio do convívio de seus semelhantes pelos homens de bem, o gorila Idi Amin, do Jardim Zoológico de Belo Horizonte, está há 27 anos em sua jaula, sem companhia. 27 anos sem moradia própria, sem um espaço seu. 27 anos sendo alvo de chacotas: “Olha, mamãe, ele não faz nada, só fica olhando.” Quer dizer: os homens, seres perfeitos e de poder inigualável, deram-lhe esse triste sedentarismo. Impediram-no de constituir família, namorar, brigar, envolver-se. Tiraram-lhe parceiros. Empobreceram-lhe a existência. Magoaram-no. Calaram-lhe uivos. Privaram-no de sua dignidade. Saquearam-lhe a maior riqueza que um ser pode ter, que é a de se manter ao lado de outro da mesma espécie, de mesma consistência emocional. Trituraram-lhe o prazer mínimo de andar sob o mesmo sol com o grupo a que deveria pertencer por condições normais de vida. Resumidamente: roubaram-lhe toda a vida que deveria ter e a que tinha direito de ter.

Ouvi dizer que, finalmente, Idi Amin terá a companhia de duas fêmeas trazidas não sei de onde. Querem compensá-lo pelas perdas, talvez. Querem se desculpar, talvez, como se o tempo passado e perdido pudesse voltar atrás. Talvez, queiram-lhe devolver o que lhe sequestraram. Mas, depois de 27 anos, fazendo do silêncio seu discurso diário, não sei se Idi Amin tem mais discernimento apropriado para a oratória. Não sei se ele, promovido durante tantos anos a ser um zero à esquerda, vê mais importância em alguma coisa que não seja se calar – fazer do silêncio uma forma de protesto contra os homens. Talvez, silenciosamente, queira agora fazer uma homenagem ao vento, fiel companheiro que, por toda a vida, foi-lhe o único escudeiro a lhe tocar o rosto.

E entre nós, olhando de frente a forma como tratamos os animais e nossos idosos, não dá para não comparar um jardim zoológico com um asilo onde encontramos pessoas abandonadas. Tanto em um quanto em outro lugar, os que ali permanecem estão condenados ao degredo de seu lar, lugar onde deveriam acontecer seus melhores momentos de vida: um por ser arrancado de seu habitat; outro, por ser banido de sua própria moradia.

Olhando-se asilos e jardins zoológicos, dá para imaginar quantos idi amins, donas marias, seus joões existem por aí, em forma de gorilas, pássaros, elefantes, tigres... pessoas. Dá para compreender o porquê de os zoológicos, tanto quanto os asilos, não serem lugares de descanso, alegria, nem de paz. Ao contrário, representam um sinal de brutal covardia.


Obs.: Refletindo sobre essa situação, e assistindo à nova versão cinematográfica de O Planeta dos Macacos, não há como não ter aquela ideia sofrida e magoada de que o mundo talvez fosse melhor, se eles realmente conquistassem o mundo. Não podemos deixar de ter o pensamento de que, talvez, fosse muito mais útil se os símios dessem uma banana aos humanos e recomeçassem tudo de novo.




O BEIJO É NOSSA BÚSSOLA



Entre tantas maneiras de demonstrar carinho, o beijo talvez seja a que mais nos permite refletir sobre quem amamos e, consequentemente, reconhecer nossa correspondência de amor. Talvez nem o sexo possa nos dar este prazer.

O sexo se concentra tão intensamente em seu ponto de encontro, que é difícil administrá-lo em uma relação, que é quase impossível nos ater ao que está fora de si e de sua atitude desesperada de se realizar. É tão imperioso, que se pode praticá-lo sem amor. Pode-se tê-lo em sua conduta tirânica, mesmo sabendo que o outro não se entrega, que o outro não alça voo em nosso espaço aéreo (O que importa o que o outro sente, se o que o nosso sexo pede nos aliena em sua concentração de usança?).

O beijo, por seu lado, leva-nos a perscrutar o mundo íntimo do ser amado. Permite-nos viajar com nossa parceria. Beijar deliciosamente, sem pressa, e sem a fome urgente de amar, fomenta uma afável energia que nos dá força suficiente para nos apegar à pessoa que conosco reparte sua aura de afabilidade.

É porque o beijo nos permite pensar durante seu ato. E em cada intervalo entre um beijo e outro, podemos sondar os olhos de quem está conosco e sentir o que eles nos representam. Ele é um abraço amigo entre os lábios e, como tal aconchego, prende-nos pela carícia absolutamente leve do contato, e não se concretiza sem a correspondência unívoca dos lábios de quem se ama. Por isso, podemos, por ele, celebrar a verdade das palavras, aquilo que, antes de seu ato, gira em torno das suspeitas. Com ele, legitimamos a pompa cerimoniosa que o amor merece em sua grandeza. Podemos beijar também sem amor, mas, por sua postura circunspecta, ele nos deixa livres para recuar em seu momento de realização.  

Enfim, beijar sem estratégias de sedução, ao mesmo tempo que sem mecanismos de defesa, significa ter nas mãos (ou nos lábios) laços que nos indicam o rumo exato do amor em sua grandeza.




MULHERES MADURAS


                A despeito do tempo que urge em sua fome costumeira, ruga nenhuma é capaz de destruir o que uma mulher constrói durante sua vida.

A idade de uma mulher não descaracteriza sua conduta. Não diminui sua brancura nem sua brandura. Não descolore seu caráter. Não desarruma seus cabelos. Não apaga seu sorriso. Não desfaz seu estilo. 

Quem a acompanha em seu amadurecimento sabe disso. Cada momento com ela vai modificando sua relação com os procedimentos de sua vida. Evoluímos numa mesma velocidade, num mesmo lapso de tempo, assimilando as mesmas vivências e intimidades. É assim que vemos a mulher sempre com os olhos de quem contempla uma novidade, pois a idade avança e a temos como parte de nosso mundo que, a cada instante, amplia-se com ela e por ela. Ela se torna peça de nosso mecanismo de funcionamento.

As rugas são os fios que ligam o presente e o passado. Se estes fios trançam a textura fria da velhice, o que se aprende e se amadurece durante toda a tecedura da vida a dois é o que nos amortece o incômodo ônus da idade, é o que nos faz conservar o êxtase ainda que diante do inevitável desmanche da aparência.

Por isso, a doçura de amar a mulher madura permanece. Em consequência disto, sua voz enfraquece, mas as palavras que dela decorrem se prolongam. Seus lábios ressecam, mas o sorriso vem da alma, e, se a felicidade existe, ele satisfaz tanto que é capaz de curar nossos mais enigmáticos traumas. Seus cabelos embranquecem, mas seu caráter não descolore.

Assim, todas as mulheres, em qualquer idade, dá-nos tesão, tensão e serenidade. Garotos e jovens não as podem distinguir desta forma porque não conseguem visualizar em sua silueta madura aquilo que elas vivem internamente como ser humano. Homens de mais idade podem senti-las em sua integridade física e moral porque as admiram com olhos iguais, porque as apreciam com olhos criteriosos como os delas.

E podemos amá-las também como “gostosas”, “fofinhas”, “morzinhos”, “docinhos”, “gatas selvagens”, seja lá a denominação com que nossa intimidade permita nomeá-las. É claro que poucos homens o fazem pela inobservância de amar, mas, aí, o problema não é com elas.




quarta-feira, 30 de abril de 2008

ARQUIVO 4 - LIVRO - UNIVERSO DE VERSOS